Entre os muitos e loucos casos estranhos que aconteceram em minha vida, esse foi indubitavelmente o maior. Nossa mente às vezes nos prega peças que nos deixa na dúvida de que os fatos realmente aconteceram ou foi um delírio proposto por ela num momento de fraqueza de nossas almas. Contar-lhe-eis o que acontecera - na época eu andava meio sensível, abastado de carência afetiva e esse foi o momento certo para que a minha mente se apoderasse de mim e brincasse com a minha ingenuidade.
Tudo aconteceu quando terminei a faculdade e comecei a estagiar em uma empresa contábil. Tinha que fazer aquele estágio, pois senão fizesse não pegaria o meu diploma. Só não sei por que fui fazer aquele curso. Sempre gostei de números, mas também tenho um grande apego às ciências humanas, lembro-me que queria fazer filosofia, mas papai sempre dizia que isso não dava dinheiro, que eu precisava era de um bom emprego, um emprego que pudesse me sustentar e que me desse um bom futuro. Ingressara então na área de números.
Mudei-me à cidade vizinha, uma cidade pequena, mas de bom desenvolvimento industrial. Como o estágio não ia me proporcionar um salário razoável, tive que dividir o quarto com uma outra pessoa. Quase não via meu colega de quarto, ele saía antes de eu acordar e voltava quando eu já estava dormindo. Falávamos pouco um com o outro, mas dava a se perceber que ele era um sujeito idôneo e inteligente.
Os meus primeiros dias naquele emprego foram totalmente entediantes. Odiava aquilo tudo, já não estava mais aguentando. Depois de um dia cheio de números, chateações de chefes e de colegas de trabalho, eu seguia para casa cansado, cabisbaixo e sem me importar com os transeuntes que ao meu parecer levavam suas vidinhas medíocres contentes. Eu já estava desanimado com o trabalho e aquela cidade não ajudava em nada também, era muito parada, não tinha muito o que se fazer por ali. Passei algumas semanas num estado quase depressivo, mas não queria largar tudo tão rápido. Talvez aquilo tudo poderia melhorar. Comecei a sair mais tarde do trabalho por conta de uma mudança de horário, até foi boa essa mudança, pois eu acordava um pouco mais tarde. Eu odiava levantar cedo.
Um certo dia quando voltava para casa conheci uma garota no ponto de ônibus, aquilo me animou a continuar no emprego. A garota cursava Faculdade de História numa cidade vizinha e sempre esperava sua condução naquele ponto. Nós nos encontrávamos quase todo dia. Poucos minutos por dia, mas foi o suficiente para começarmos um relacionamento. Ela era de uma estranha beleza, a beleza que eu procurara há anos em uma mulher. Seus negros e enormes olhos me encantavam. Seus olhos eram os olhos de Ligeia numa descrição de Poe – quero crer que fossem eles bem maiores que os olhos comuns à nossa raça. As pupilas eram do negro mais brilhante, ensombradas por longas pestanas de azeviche¹. A cabeleira negra com pequenos contornos ondulados tornava-se viva quando a brisa de outono a provocava. A cútis era alva como o lírio banhado ao sereno da manhã, delicada, brancura virgem que se destacava ao exagero das sombras e brilho labiais. Aquele misto de Ligeia e Lady Rowena me encantava, me excitava.
Todos os dias me encontrava com ela no mesmo lugar. Havia um grande arbusto atrás do nosso ponto de ônibus que encobria o banco onde sentávamos. Lá nos escondíamos dos olhares curiosos dos transeuntes e das pessoas que estavam à espera de sua condução. Nunca nos encontrávamos em outro local. Sempre a convidava para um fim de semana na minha cidade ou na casa dela, mas nunca recebia uma resposta positiva. Havia um mistério que a envolvia, o qual eu não conseguia decifrar. Ela me hipnotizava. Não conseguia contestar nada do que ela dizia, aceitava tudo numa boa. Se estava com ela tudo estava bom, não precisava mais de nada. No entanto esse mistério me intrigava, pois quando eu falava dela para os meus companheiros de trabalho, ninguém a conhecia, nunca a viram nas ruas ou em qualquer outro lugar. O meu colega de quarto que fazia pós-graduação na mesma universidade que ela, também não a conhecia. Ele não ia à faculdade no mesmo ônibus, portanto ele nunca a vira. Mas eu a via, quase todo dia por poucos minutos ; a via e a sentia.
Poucos foram aqueles momentos de prazer, poucos foram aqueles momentos de ânsia pela vida que chegava a tomar conta de mim.
Os dias se seguiam normais na empresa e eu já estava me habituando com o trabalho, me esforçava cada vez mais, recebia elogios do meu chefe e com poucos dias de estágio ele havia me prometido uma efetivação com um cargo bem melhor em outro setor. Sentia-me feliz por ter conseguido me fixar no emprego e via o orgulho de meus pais pelo meu sucesso na empresa. Contudo esse esforço e essa animação não duraram muito. Um certo dia ao deixar a empresa às pressas para encontrar a minha beldade poeana, encontrei meu colega de quarto em um bar onde tomava um café, assim que me viu chamou-me, convidou-me a sentar e disse:
- Quer me acompanhar no café?
- Não! Obrigado, estou com um pouco de pressa. - disse eu meio ofegante pela carreira que dera até ali.
- Sente-se, tenho algo a lhe contar sobre a sua misteriosa namorada.- falou de um jeito que me convenceu a escutar.Tudo bem, mas fale rápido, pois tenho que vê-la. Ela está me esperando.
- Olhe, não sei se vai gostar, mas não tenho boas notícias. - disse ele levando um gole de expresso à boca.
Estranhei no primeiro momento, mas queria ouvir o que ele tinha a me dizer. Chamei o garçom e pedi um café. Ele me indicou um capuccino, disse que preferia um comum, já que estava com pressa. Ele voltou a me atazanar perguntando se eu preferiria um expresso. Quase irritado respondi que queria apenas um comum. Enquanto o garçom saía, voltei ao meu colega de quarto, já ofegante pela ansiedade.
- Então, o que tem a me dizer?
- Olhe, ontem fui até a faculdade para entregar um trabalho e resolvi pesquisar sobre a sua Lady Ligeia. Fui até o Curso de História e não vi ninguém com a descrição que me fizera dela. Falei com o pessoal do curso e ninguém nunca vira uma pessoa com aquela descrição.
- Fui até a direção do curso e não há nenhuma inscrição, matrícula ou relato sobre essa menina. Acho que ela está te enganando sobre esse lance de faculdade. - disse-me levando o guardanapo à boca limpando as gotas de café que caíra sobre o queixo.
- Mas não é possível!- gritei não acreditando no que ouvira.- ela não pode fazer isso comigo,eu confiei nela o tempo todo.
- É melhor você tirar isso a limpo. Corra que ainda dá tempo de alcançá-la.
-Falou! Estou indo nessa!
Saí numa carreira ainda maior do que a anterior, já virando a esquina olhei para trás e vi quando o garçom chegou com o meu café. O meu colega acabou tomando e pagando.
Atravessei três quarteirões e cruzei a rua da Praça Central onde ficava o ponto de ônibus. Notei que faltavam poucos minutos para a saída do ônibus dela. Notei também que o povo costumeiro estava ali, mas nenhum sinal da minha Annabelle Lee. Corri até o nosso banco preferido e nada. Sentei-me e fiquei à sua espera. O ônibus que a levava chegou e partiu e nada de ela chegar. Esperei mais algumas dezenas de minutos e nada. Fui embora para a casa atordoado e naquela noite não consegui dormir, passei a noite em claro tentando entender o que estava acontecendo e só fui dormir depois do corujão II, quase seis da manhã. Acordei às oito e meia, mesmo depois das abluções meus olhos ainda estavam vermelhos de sono e quase não se abriam direito. Segui-me rumo ao trabalho do mesmo jeito de quando começara; cabisbaixo, cansado e sem me importar com os transeuntes.
Trabalhei sem me concentrar em nada. À tarde, na saída, esquecera até de bater o cartão. Passei pela praça, as pessoas ainda estavam lá à espera de seus respectivos bondes, mas nada de ela estar lá. E assim se seguiu pelos dias e pelas semanas seguintes, as mesmas caras, as mesmas piadas infames, os mesmos sorrisos forçados, enfim tudo estava igual, menos ela. Menos a presença da minha Lady Rowena, da minha Virginia, da minha Annabelle Lee, enfim de todas as personagens poeanas as quais eu nela eu identificara. Ela havia sumido sem vestígios, sem deixar rastros.
Quando dei-me conta que não a encontraria mais, fui perceber que havia perdido a minha promoção no trabalho. Disseram-me que eu não estava levando o trabalho a sério, que por negligência ao serviço nem para o estágio eu poderia voltar. Juntei minhas coisas e saí atordoado, parei no bar do café costumeiro e o garçom já veio com o uma xícara de comum. Virei-me para ele e disse:
- Não. Hoje eu não quero café traga-me um conhaque.
- O senhor deseja um nacional ou importado? - perguntou-me com cara de quem achava que eu iria tomar apenas uma dose.
-Ora! Não importa! Traga-me logo o mais forte!
Logo o garçom chegou com uma dose de um nacional bem porreta, aquele que desce macio e reanima. Ah! Só no slogan mesmo. A bebida desceu arranhando tudo...
- Ei, garçom! Traga mais uma e dessa vez pode ser dose dupla! - gritei.
E assim foram várias doses duplas. Já não estava nem falando direito quando saí do bar. Cheguei em casa bem mais tarde do que de costume, meu colega de quarto já havia chegado e estranhou com a situação em que eu me encontrava. Lembro-me que fui ao banheiro tomei um banho, caí na cama e só acordei às dez da manhã do outro dia com uma tremenda dor de cabeça. Se aquela bebida desce macio e reanima, preciso rever meus conceitos. Não me restava um pingo de ânimo naquele dia.
Resolvi que iria voltar à minha cidade. Ali já não havia nada mais que me prendesse. Havia perdido o emprego e a minha namorada havia sumido do mapa. Arrumei minhas coisas e decidi partir no dia seguinte. Já havia arrumado minhas coisas quando meu colega de quarto chegou, quando me viu começou a rir e me contou o que se passara na noite anterior.
- Cara, você estava hilário ontem.- disse sem se conter dos risos.
- Caramba!- interjeicionei- o que eu aprontei ontem?
- Ah! você me contou toda a história quase chorando, contou-me que perdeu o emprego, que iria embora e não voltaria mais nesta cidade, xingou todo mundo e queria apenas mais um favor de mim.
- Putz! Não me lembro de nada! E qual foi esse favor que te pedi? -perguntei ansioso.
- Você me pediu para que eu fosse até o ponto da praça e perguntasse às pessoas que esperam o ônibus naquele horário se elas lembravam da sua menina misteriosa, se já tinham visto você com ela lá no banco.
-Vixe! E você fez isso?
- Claro! E sabe o que eles me responderam?
- Não! Diz logo aí!
- Que nunca tinham visto essa menina e a única pessoa que ficava sentada no banco nesse horário era um rapaz sem nenhuma das características que eu passara a eles.
- Caramba! Mas não é possível! Não pode ser! Eu não estou louco!
- Claro que não está louco, mas isso deve ser coisa do seu sexto sentido.
- Sexto sentido?!!!! Sexto sentido?!!!! - Gritei com os nervos à flor da pele.- EU QUERIA MESMO ERA UM SEXO SENTIDO!!!!!
¹ descrição que Allan Poe (escritor do Romantismo Americano) fez de sua personagem Ligeia no seu conto de mesmo nome.
Guido Carmo 27/02/2012
Gostei do conto, Gui!! Prendeu minha atenção do início ao final.
ResponderExcluirBeijos!
Que bom que gostou. Um elogio vindo de você tem muito valor!!! Valeu!!!!
Excluiruito bom o conto, me fez recordar de um antigo amigo que sempre tinha casos amorosos muito estranhos!
ResponderExcluirkkkkkk massa!
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